Lobos
de Wall Street à portuguesa
28
de Janeiro, 2014
por Luís Osório
Na
última obra de Martin
Scorsese, O Lobo de Wall Street, sentei-me na segunda fila.
Ninguém à minha frente, nenhum lugar por preencher
atrás, sala cheia. Do princípio ao fim, gargalhadas.
Pipocas, boa disposição. Na
catalogação dos Globos de Ouro, o filme inclui-se
na categoria Comédia/Musical, batia certo.
Só que 'O Lobo'
é uma assombrosa viagem ao inferno. Uma viagem a um lugar (nós próprios)
onde tudo se vende, deseja e é passível de ser corrompido, comprado, iludido. A moral é
amoral. Interessa o prazer da matéria, os
sentidos do corpo, a volúpia das sensações, o ir sempre mais
longe e mais fundo. Scorsese consegue o impensável: tornar os espectadores em actores principais
do seu filme, cada riso é uma
prova amargurada de que, tal como
os que estão
em plano, também gostaríamos de enriquecer, de ter o que é bom da
vida, bons carros, mulheres e homens desejáveis, máscaras que nos
fazem ser o que ambicionamos.
No
último plano, Jordan
Belfort (Di Caprio), já depois de ter sido
condenado e cumprido pena, é apresentado a uma audiência ávida
de o ouvir explicar como cada um pode
cumprir o sonho de, um dia, ser como ele.
O
Mal é mais assustador quando assume formas que não contemplam
qualquer tipo de culpa. Eu também ri
da ganância de Belfort ou de Donnie (extraordinário
Jonah Hill) e, logo no dia seguinte,
no jornal da manhã, leio várias
notícias que me remeteram para o filme.
Notícias que nos remetem para
as 'dicas' que homens de sombra 'oferecem' para vender acções que, no dia seguinte, estarão
valorizadas e serão o passaporte fácil para uma vida
livre de preocupações financeiras. Ninguém fica magoado e, sobretudo, ninguém adormece com culpas ou 'macaquinhos na cabeça'. É uma
questão de oportunidade que pouco ou
nada colide com a realidade;
não há ninguém
que não saiba
que tudo é virtual, um jogo onde quem
não se serve à mesa, quando
o pode, não passa de um totó, um 'crominho' como agora se definem nas nossas
escolas as crianças diferentes.
Não existe culpa.
Quem 'lava' dinheiro, quem 'trafica' negócios de Bolsa ou autoriza que
determinados terrenos protegidos por PDM's possam ser desbloqueados, no fundo de si próprio não
reconhece que é criminoso.
De
facto, se tivermos terras e
as cultivarmos, dizem-me homens de mãos calejadas e conhecedoras dos segredos das enxadas, sabemos que as ervas daninhas se desenvolvem muito mais depressa do que qualquer outra
planta por mais benigna que
seja. Julgo acontecer o mesmo no cimento das cidades - o Mal é imparável, rápido e surpreendente porque se multiplica invisível.
Saí do filme de
Scorsese angustiado, silencioso.
Não por ser diferente dos outros, mas por não
ter a certeza absoluta de como reagiria se fosse colocado perante um cheque em branco. Se um 'amigo' me telefonasse hoje a dizer compra acções
e vende-as depois de amanhã porque ganhas
500 por cento do que investiste, não as compraria? Teria a força para não
o fazer? Não há nada de tão assustador como a ideia de que podemos
fazer o Mal sem que mal nos pareça.
De
quantos banhos precisamos para que a água possa
ultrapassar a pele e lavar o que temos
dentro? Seria tão mais fácil
se nos fosse possível cobrir a alma de espuma, enxaguá-la,
perfumá-la. De quanta água estamos a falar? Onde a encontrar? Não a mesma que
nos lava o corpo, mas uma água
que não molha,
que não pede
toalha, que nos inunde por
dentro. Uma que nos deixe
como novos. Retemperados. Onde estará?
Não sei. Sei que precisamos
de dar uma volta a isto. Lavar
as ruas de politiquice. Inventar novos projectos. Novos partidos. Novos sindicatos. Novos protagonistas. Novas palavras. Que à força de tanto terem sido
ditas perderam toda a relevância: empreendedorismo, inovação, crescimento, responsabilidade, excelência.
Palavras que valem tanto como
Amor ou Paixão para um casal em
litígio. Em Portugal, os nossos doutorados
e pós-doutorados, gente que atingiu o cume
da pirâmide académica e se eterniza com bolsas, no momento em que as deixa
de ter (muitos que trabalham longos
anos para o Estado nesse regime) não têm sequer direito
a subsídio de desemprego. Centenas de casos em Portugal, voltarei ao tema pois,
entre todos os que poderia falar,
e tenho falado, é o mais vergonhoso exemplo do estado a que o Estado chegou.
Dar
a volta a isto, contar uma nova história, um novo livro. Que talvez já
não possamos ler, mas que
possa ser lido pelos nossos netos, quem
sabe. Há uns meses, também
a propósito de novas histórias,
comecei um conto que falava de uma
pessoa infeliz.
Vivia numa casa sem janelas. Habitava
no silêncio e esquecera-se
das palavras por não as usar. Um dia um vendedor de livros sem letras
bateu-lhe à porta. Ofereceu-lhe um por escrever, se gostasse pagaria o próximo a dobrar. Começou a lê-lo nessa mesma
noite. Muito lentamente, ao fim da
página 800, tão branca e vazia como as outras, reconheceu algo de muito diferente: um dia em que
não parecia infeliz. Em casa existiam janelas. Livros escritos. E na mesa o primeiro de todos, o que lhe
fora oferecido, marcado na página
800. A página onde nasceu uma nova história.