A história que une americanos e franceses

 

Helio Gurovitz

 

19/02/2015 08h00

 

Pergunte a um americano o que acha dos franceses. São uns arrogantes, dirá, presos ao passado, a uma cultura que se acha superior, preguiçosos, defensores de privilégios, de uma sociedade engessada, reféns de um modelo econômico cujo naufrágio é evidentesão até, palavrão nos Estados Unidos, “socialistas”. Agora, pergunte a um francês o que acha dos americanos. São um povo presunçoso, sem refinamento, gente que desconhece os prazeres da vida, não sabe comer nem beber, pensa em dinheiro, armas e poder, tem mania de grandeza e não respeita a privacidade alheiasão gente fútil, superficial e, palavrão na França, “grosseira”.

 

Preconceitos, claro. Basta lembrar que, pouquíssimo tempo atrás, os americanos transformaram em best-seller o livro do “neossocialistafrancês Thomas Piketty sobre a desigualdade. E na Provença, uma das mais requintadas regiões da França, a população local lota o McDonald’s no sábado à noite, para comer hambúrguer com batatas fritas. Os americanos as chamam de “batatas francesas”. Os provençais adotaram o anglicismo “potatoes”. Franceses e americanos são, como irmãos que vivem às turras, mais parecidos que diferentes. A raiz disso está na história. A independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa têm o mesmo DNA, resultado de uma inovação no mundo das ideias conhecida como Iluminismo.

 

O centro de difusão das ideias iluministas foi a França, por meio de uma espécie de internet do seu tempo: a Enciclopédia. A história dessasuperinfovia” do século XVIII é o tema de O Iluminismo como negócio, do historiador Robert Darnton, um americano apaixonado pela França, diretor da biblioteca da Universidade Harvard. Concebida por filósofos, a Enciclopédia tinha, segundo Darnton, uma missão dupla. Primeiro, era um manifesto do Iluminismo. Punha a razãonão mais a luz divina ou os desígnios reais – no centro das ideias. Segundo, os enciclopedistas fizeram um relato metódico de todo o conhecimento acumulado até então, em verbetes escritos por especialistas. O profissionalismo deveria se impor sobre nobreza, privilégio real ou direito divino.

 

Em sua época, a Enciclopédia foi o maior empreendimento editorial de todos os tempos. Seus efeitos se estenderam por mais de 50 anos. No começo, foi proibida, depois liberada graças a um editor genial, que a transformou em best-seller: Charles Joseph Panckoucke, comerciante de Lille e uma espécie de Rupert Murdoch de seu tempo. Sofreu múltiplas reedições, remendadas, corrigidas e suplementadas de acordo com as conveniências políticas e comerciais. Foi vendida por meio de um sofisticado sistema de assinaturas, em que trechos eram entregues à medida que eram produzidos. Os editores franceses faziam propaganda enganosa para vender as assinaturas, se engalfinharam em disputas comerciais renhidas, Panckoucke foi vítima de um sócio desleal, de autoridades que confiscaram livros e de cópias piratas em toda a Europa. Ao fim do século, e de toda essa aventura, suas edições disseminaram o conhecimento dos enciclopedistas até os Estados Unidos, onde Thomas Jefferson, ex-embaixador na França, convenceu compatriotas como Benjamin Franklin ou James Madison a assiná-la.

 

O sucesso da Enciclopédia não se deveu apenas aos enciclopedistas, mas sobretudo aos empresários. Panckoucke soube detectar no público a demanda pelas ideias iluministas e pelo conhecimento, navegou com maestria no tortuoso ambiente político e jurídico da França pré e pós-revolucionária, investiu em modernos equipamentos gráficos e gigantescas remessas de papel, firmou acordos com distribuidores, saiu vitorioso da disputa com seu sócio, enfrentou reivindicações duras dos impressorestudo para suprir o mercado de uma nova edição, melhor e mais barata. Mais que uma inovação filosófica, a Enciclopédia foi, diz Darnton, um magnífico empreendimento comercial. Como o padeiro de Adam Smith (que não nos alimenta por bondade, mas por dinheiro), seus editores não estavam interessados em iluminar o mundo com ideiasou não apenas. Eram capitalistas gananciosos, muitas vezes desleais. “Os mais eminentes editores do Iluminismo operavam com base em suborno e extorsão, falsificação de contabilidade e roubo de listas de assinantes, espionagem mútua e manipulação de alianças maquiavélicas que davam ampla margem à traição e às intrigas”, escreve Darnton.

 

 

Essa história desmente quem acredita em simplicações. Verdade que os americanos levaram o capitalismo a seu estágio mais avançado. Verdade que os franceses ficaram para trás. Mas nem de Piketty se faz a França. muitos Panckouckes. O monumento gigantesco que a todos impressiona na chegada ao porto de Nova York foi um presente francês. A estátua original, menor é verdade, fica em Paris, não muito longe da Torre Eiffel. Ambas lembram aquele velho ideal iluminista que até hoje une os dois povos: a liberdade.