A liberdade encantoada

 

Cada um de nós está sujeito a bisbilhotices do estado americano. O pior é que não sabemos como

 

Até outro dia, os vilões da espionagem e da invasão de privacidade eram os governos autoritários, em países como China ou Coreia do Norte. Não sem motivo. Nesses lugares, o Estado não prima pelo respeito à intimidade de seus cidadãos. Sem a menor cerimônia, revira gavetas, atropela memórias familiares e pisoteia segredos pessoais de gente indefesa, tudo em nome de proteger os interesses da pátria, do socialismo, do que quer que seja.

 

Em 2006, um filme alemão dirigido por Florian Henckel von Donnersmarck, A vida dos outros, escancarou o pesadelo de como a Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental durante a Guerra Fria, instalava escutas dentro de apartamentos a qualquer hora, sob qualquer pretexto, e espionava pessoas comuns enquanto tomavam banho, liam jornal ou faziam amor. A vida dos outros (Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2007) chocou suas audiências com o perfil minucioso e aterrador de um Estado que podia tudo contra cidadãos silenciados. A partir dessa pequena obra de arte, e também a partir de relatos factuais, hoje fartamente comprovados pela História, fomos aprendendo uma lição que não temos o direito de esquecer nunca mais: o que separa uma democracia de um regime totalitário é o lugar da transparência.

 

Na democracia, a lei impõe que a vida privada seja indevassável, assim como impõe que o Estado seja transparente. Nos regimes totalitários, o Estado é opaco, faz o que bem entende e está acima da lei. Pode até dispor da intimidade das pessoas mais ou menos como um cavalo dispõe do capim que mastiga no pasto. Na democracia, nós, cidadãos, temos o direito a nossos segredos íntimos, do mesmo modo que temos o direito de conhecer cada detalhe da administração pública. No totalitarismo, -se o oposto: o funcionário do Estado pode ocultar do público o que bem quiser, além de ter à mão as ferramentas para devassar a privacidade de quem bem entender. Conclusão óbvia: mais democracia onde o Estado é mais transparente e onde a privacidade é mais respeitada – e mais autoritarismo onde o Estado é mais opaco e onde os cidadãos não têm como proteger seus assuntos pessoais das investidas das autoridades.

 

Até outro dia, situações de selvageria estatal como a do filme A vida dos outros eram comuns em países submetidos a ditaduras escarradas. As democracias, ou as pretensas democracias, estavam a salvo desse tipo de deformação, pois asseguravam liberdade de expressão e direito à privacidade. Quando a internet surgiu, foi saudada por muita gente como uma invenção genuinamente democrática, uma tecnologia que as ditaduras jamais conseguiriam controlar. A internet era, então, o casamento perfeito entre a tecnologia de ponta e a democracia mais avançada. Uma era a realização da outra.

 

Ainda outro dia, em abril deste ano, a revista The Economist, em reportagem sobre a internet na China, lembrou uma frase que Bill Clinton pronunciou quando ainda era presidente dos Estados Unidos. Questionado sobre a possibilidade de o governo chinês monitorar de perto a comunicação na internet, ele afirmou: “Será como enxugar gelo” (em inglês, “nail jell’o to the wall”, o que literalmente quer dizerpregar gelatina na parede”). Com seu estilo espirituoso, leve, fácil, Clinton americano profetizou que a internet não poderia ser administrada pelas garras estatais e sintetizou o olhar do pretensomundo livresobre as “sociedades fechadas”, um olhar superior, confiante e ligeiramente irônico.

 

Isso tudo foi outro dia. Hoje, o panorama virou de ponta-cabeça. O Fantástico, da TV Globo, revelou que os e-mails de ninguém menos que a presidente Dilma Rousseff podem ter sido lidos por serviços secretos de inteligência americana, numa operação gigantesca, que transforma as interferências do Estado chinês sobre a rede de computadores numa brincadeira inofensiva (a propósito, contrariando a previsão de Clinton, a China consegue monitorar razoavelmente o fluxo de informações na web). Pelas notícias que correm o mundo, o controle exercido pelo governo americanonão apenas nos Estados Unidos, mas em todos os continentesparece ser maior, mais poderoso e mais invasivo. E, atenção: não é a presidente do Brasil que sofre esse tipo de invasão violenta. Cada um nós está sujeito a bisbilhotices análogas. O pior é que não sabemos como isso pode ser feito, pois o Estado americano, opaco, não diz.

 

Um mundo em que não temos direito à privacidade não é um mundo livre. Um Estado dito democrático que se vale da internet para invadir privacidades, bem... não contávamos com isso até outro dia.